Fernanda Simionato
O Dr. Bruce Banner é um cara legal.
Cientista brilhante, é um dos maiores especialistas do mundo em física nuclear.
É normalmente afável e simpático. Mas Banner tem um probleminha que o
diferencia das outras pessoas: quando fica com raiva, transforma-se em uma
gigantesca criatura verde, irada, que sai quebrando tudo que vê pela frente.
Ele se torna o Incrível Hulk, das histórias em quadrinhos e dos filmes.
Banner é um personagem de ficção, mas
todos têm algo em comum com ele. Carregamos, dentro de nossa psique, emoções e
pensamentos negativos, coisas das quais temos vergonha e que podem ser muito
destrutivas, se não tomarmos cuidado. O psicanalista Carl G. Jung chamou essa área
de "sombra". São nossos demônios, monstros internos. Eles podem não
ser verdes nem sair por aí destruindo bairros inteiros, mas têm potencial para
sabotar nossos sonhos, melar relacionamentos, nos deixar confusos e isolados.
Do mais cruel assassino à pessoa mais
iluminada, somos todos capazes de raiva, inveja, preconceito, medo, ciúme,
ganância. "O ser humano nasce com um lado claro e um lado sombrio",
diz a psiquiatra e analista junguiana Iraci Galiás, uma das fundadoras da
Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Não há razão para se envergonhar
desses impulsos e sentimentos: é simplesmente o normal, parte do que é ser
humano. A mesma pessoa capaz de generosidade e amor pode sentir ciúme, inveja e
preconceito.
Acontece que nossa consciência não sabe
disso. Ela não lida muito bem com alguns dos nossos pensamentos e impulsos.
Alguns são tão assustadores e traumáticos que a gente varre para debaixo do
tapete, ou seja, para o inconsciente. E para um lugar específico dele: a
sombra. Isso acontece por meio de um processo chamado de
"dissociação", em que os fragmentos que não conseguimos aceitar se
separam do resto da nossa psique e ficam isolados. E nós nos sentimos
fragmentados, divididos.
A sombra é como uma gaveta onde jogamos
o que não queremos que os outros saibam sobre nós. É um porão da psique, um
depósito das coisas que consideramos inaceitáveis, vergonhosas, difíceis de
admitir até para nós mesmos. Tudo começa na infância, com algum trauma que
sofremos, alguma repressão, humilhação, ressentimento ou culpa. "Nosso
`demônio interior¿ nasce a partir da falta de amor que você vivenciou ou sentiu
ter vivenciado", diz a psicóloga Letícia França de Carvalho, que ministra,
em Belo Horizonte, o workshop (Re)Conhecendo nossos demônios. Como forma de
defesa contra o sofrimento, a criança varre aquela experiência para a sombra.
Ao contrário de emoções como
generosidade, compaixão, bondade, que nos deixam mais leves, expansivos,
tranquilos, as emoções negativas são extremamente desconfortáveis. "Elas
são aflitivas, nos machucam. Quando as sentimos, a mente fica incomodada, não
está em paz", diz Tenzin Palmo, uma das mais respeitadas monjas do budismo
tibetano, da linhagem Drukpa. Quando você fica enraivecido com alguém que
roubou sua vaga no estacionamento, quem é que sofre com isso? O espertinho que
entrou na sua frente? Ou você mesmo, que fica remoendo aquela sensação?
E aí vem outro problema. Muitas vezes,
ao não sabermos o que fazer com nossa raiva, preconceito, inveja ou ciúme,
podemos, além de machucar a nós mesmos, machucar os outros. Para impedir que
nossos demônios internos saiam desgovernados por aí, como o Hulk, só tem um
jeito. Prestar atenção neles. Fácil não é. Como a gente não costuma
mexer no porão da psique, ele é escuro, empoeirado, assustador. Tem teias de
aranha, ratos, baratas, o cheiro é tóxico e viciado. Mas negar nossos demônios
por medo de enfrentá-los é como não ir ao médico por medo do diagnóstico. A
doença não vai desaparecer só porque você não compareceu à consulta.
Da mesma forma, os símbolos e emoções
guardados no porão da psique não irão embora. E eles não gostam nada de ficar
lá abandonados. Assim como as crianças choram quando querem atenção, a sombra
faz um barulho enorme para que a gente preste atenção nela. E dá um jeito então
de sair de vez em quando e se infiltrar em nossas ações. É aquele dia em que
você, normalmente calmo e equilibrado, se pega gritando com os funcionários. Ou
o pai que, num dia de raiva, bate no filho. A pessoa que se orgulha de não ser
preconceituosa mas solta uma piada homofóbica, ou um comentário machista,
porque afinal "é só uma brincadeira". A sombra também pode se
traduzir em sintomas, como ansiedade, depressão, manias diversas. Pode sabotar
nossos planos, ao fazer com que comamos ou bebamos demais, por exemplo.
E como a gente faz, então, para lidar
com o lado sombrio? O primeiro passo talvez seja o mais difícil: olhar para
ele. Como costumamos negar os demônios, muitas vezes nem sabemos que estão lá.
Por isso, para conseguir enxergá-los, vale prestar atenção no que dizem
colegas, amigos, companheiros. Se muita gente já falou sobre seu mau humor ou
arrogância, talvez haja um tiquinho de verdade nos comentários. Existem outras maneiras de ver a
sombra. Uma dica é prestar atenção nos seus sentimentos algumas vezes ao dia.
Toda vez que tocar o telefone, por exemplo. Analise como está se sentindo: está
bem? Feliz? Em paz? Sua mente está instável, ou aflita, ansiosa, confusa,
raivosa? Você ficará surpreso ao perceber o quanto os pensamentos negativos são
frequentes.
Outra forma de exercitar o olhar é: a
cada vez que perceber que sentiu raiva, inveja, maledicência ou qualquer outro
sentimento negativo, permaneça com ele. A monja budista Pema Chödrön fala sobre
isso em sua obra Os Lugares que nos Assustam (Sextante). Uma de suas sugestões
é agir no momento em que o sentimento ocorre: inspire e expire com ele,
tentando deixar as explicações de lado e ficar apenas com a energia subjacente.
Não foque nas razões de sua raiva, por exemplo, mas na raiva em si. Permita-se
sentir a raiva, ver como ela pulsa, o que ela o faz sentir, como ela afeta seu
corpo; deixe que a raiva 0 suavize e não que o torne mais rígido e amedrontado.
"Quando estamos dispostos a permanecer, ainda que por apenas um momento,
com uma energia desconfortável, aprendemos gradualmente a não ter medo
dela", escreve Pema Chödrön. Aos poucos, desenvolvemos mais aceitação e
abertura para qualquer situação, emoção ou pessoa que apareça.
A irritação pode ser uma das melhores
armas para reconhecer nossos demônios. Isso porque, incapazes de olhar para
nossos próprios defeitos, costumamos vê-los nos outros. É o que em psicanálise
se chama "projeção". É como um espelho: se no fundo eu me acho
invejoso, mas não tenho coragem de admitir, vou acabar enxergando a inveja em
todas as outras pessoas. É provável que, de todos os possíveis defeitos que as
pessoas têm, nenhum me irrite mais que a inveja, pois ela é o reflexo daquilo
que não consigo ver em mim. O mesmo acontece com a raiva, o medo, a ansiedade,
o ciúme... É sempre bom prestar atenção nas coisas que nos tiram do sério, pois
em geral dizem algo sobre nós mesmos.
A ideia de projeção costuma gerar
protestos. "Eu não sou NADA parecida com fulano", você pode dizer.
Mas será mesmo? Talvez você manifeste a característica que odeie de maneira
diferente. Se reclama da mãe bagunceira, talvez você também tenha tendência a
acumular coisas. A pessoa viciada em chocolate, que nunca consegue seguir a
dieta, pode ser a primeira a apontar que o companheiro bebe demais, por exemplo.
Ou então o medo de ser como alguém que reprovamos é tão grande que reprimimos
aquela característica completamente, mesmo nas doses que seriam consideradas
positivas. Uma pessoa que acha os pais egoístas pode ter decidido, muito cedo,
não ser egoísta. E aí ela se pega, 40 anos mais tarde, soterrada de tarefas,
pois é incapaz de dizer não para os inúmeros pedidos que lhe fazem. No caso
dessa hipotética pessoa, um pouco de egoísmo não faria mal nenhum.
E de repente você admite: sim, sou
preconceituoso. Sim, fiquei vermelho de raiva. Sim, passei dos limites com meu
companheiro. E agora, o que fazer? Um dos primeiros impulsos é ficar bravo
consigo mesmo, decepcionado. Puxa, logo eu, que me achava uma pessoa tão
legal... É aí que entra a compaixão. Você precisa aceitar sua sombra.
Perdoar-se por ela. Você não tem culpa de se sentir assim. Eram as defesas que
você tinha na época, e você as usou da melhor forma que pôde. "É preciso
ser amigo de si mesmo", diz a monja Tenzin Palmo. "Senão, como poderemos
ser amigos dos outros?" A compaixão começa, em primeiro lugar, com a gente
mesmo, ao olharmos para as coisas que não gostamos em nós e nos perdoarmos por
elas. Elas são nossas feridas, resultado de nosso sofrimento. E não faz sentido
brigar com alguém por estar ferido, faz?
Se pudermos ser gentis com nós mesmos,
fica mais fácil ser assim com os outros. Pois entendemos que eles também têm
suas sombras, também estão feridos. "Com uma pequena mudança de
perspectiva, podemos perceber que as pessoas falam coisas maldosas pelas mesmas
razões que nós. Com senso de humor, podemos perceber que nossas irmãs e irmãos,
parceiros, crianças, colegas de trabalho nos deixam loucos da mesma maneira que
nós deixamos os outros loucos", escreve Pema Chödrön.
A partir do reconhecimento e da
aceitação, a gente lida com o problema. Se o que pega é a raiva, há livros,
técnicas e terapias para aprender a viver com ela. Se é a ansiedade, a mesma
coisa: procuramos um médico, um psicólogo ou alguma espécie de terapia que nos
ajude a aliviar a tensão. "É como ir à academia. Nós exercitamos mais as
partes que mais necessitam. Se meus braços estão OK, eu trabalho um pouco com
eles, mas vou dar mais atenção às pernas, que estão precisando mais", diz
Tenzin Palmo. É assim que a gente cresce.
Nós não fomos treinados para lidar com
a sombra; por isso é tão difícil reconhecê-la, aceitá-la. "Fomos
condicionados a temer o lado obscuro da vida, assim como o nosso", diz a
psicóloga Letícia França de Carvalho. Dizemos para as crianças que é errado sentir
raiva, medo, ansiedade, desejo. E aí crescemos sem ferramentas internas para
lidar com essas situações. A analista Iraci Galiás conta que, quando sua filha
era pequena e chorava por alguma razão, ela dizia: "Chore, filha, pode
chorar". Afinal, a tristeza da criança é legítima, é preciso legitimá-la.
Mas o que costumam fazer os adultos? Com a melhor das intenções, pedem:
"Não chore!" Numa ocasião, a filha de Iraci, então com 7 ou 8 anos,
colocou as mãozinhas na cintura e disse: "Eu tenho o direito de
chorar". Estava certíssima.
É preciso lembrar: nenhum sentimento,
nenhuma emoção, nenhum impulso que possamos sentir é errado. Da inveja do
colega às fantasias sexuais mais impraticáveis, não é errado sentir ou pensar
coisa alguma. Afinal, como qualquer pessoa que já tentou meditar sabe, não
temos nenhum controle sobre o que sentimos ou pensamos. Nossa mente fica sempre
à deriva, à mercê de todo tipo de impulso ou emoção.
O problema não são esses pensamentos,
mas o que fazemos com eles. É isso que deveríamos ensinar às crianças: tudo bem
estar com raiva da irmãzinha, afinal, ela tomou seu brinquedo. Mas isso não
quer dizer que pode ir lá e bater nela. Tudo bem ter preguiça de ir para a
escola. Mas mesmo assim você tem que levantar e ir. Quando dois irmãos brigam e
os adultos pedem que eles se abracem e "façam as pazes", estão
cometendo, de certa forma, uma violência. Não é hora de as crianças se
abraçarem: elas estão com raiva! Isso pode acontecer depois, quando os ânimos
estiverem mais calmos.
Naquele estado tenso ou alterado,
pensamos que mandar um e-mail desaforado, colocar aquele comentário
desagradável no Facebook ou até mesmo comer um chocolate extra nos trará algum
alívio. É aí que devemos nos perguntar: eu irei de fato me sentir melhor quando
isso acabar? Podemos fazer um experimento e tentar interromper a reação em
cadeia da raiva ou da ansiedade; não precisamos culpar outra pessoa, nem
precisamos culpar a nós mesmos.
A sombra é parte de nós, o resultado de
nossas feridas. Mas ela não nos define, assim como uma dor de dente ou uma
coceira na perna não nos define. Quando passarmos a não nos julgar com tanta
severidade, poderemos aos poucos reconhecer nossos demônios, sejam eles verdes
como o Hulk, murchos como o medo ou famintos como a inveja. Nossa tarefa, em relação à sombra, é
tirá-la do porão fétido em que se esconde e incorporá-la ao nosso self. É o que
se chama, na psicologia analítica, de "integração": voltar a ser uma
pessoa inteira, não mais dissociada, não mais dividida. No budismo, é o
equivalente ao despertar: o momento em que a ilusão do ego não mais nos
confunde, e podemos ver as coisas como elas são, sem véus, para além da
dualidade.
Podemos encarar nossos demônios como professores, que estão em nosso
caminho para mostrar onde precisamos melhorar. Assim como a fome aponta que se
deve comer e a dor, que há algo errado no corpo, as emoções negativas servem de
alerta para as questões que nos afetam de maneira mais profunda. Se passarmos a
enxergar nossos impulsos inconfessáveis como professores - Jung os chamava de
"sparring", o parceiro do treino de boxe -, poderemos transcendê-los
e aí, e só aí, eles perderão força. Ficarão menos assustadores, menos
asquerosos. E abrir aquele porão cheio de demônios ficará cada vez mais fácil.
13/04/2017 - 14:49