Natália Garcia
Bianca Santana é professora, formada em
jornalismo, especializada em educação e tecnologia, e tem três filhos o que
fica evidente logo à entrada de sua casa no bairro de Pinheiros, em São Paulo.
O notebook, de onde trabalha todos os dias, divide espaço na mesa com os
brinquedos do Lucas, o filho mais velho, e do Pedro, o do meio. Na cestinha, a
Cecília, aos 7 meses, só deixa a mãe trabalhar se estiver ouvindo música. A
rotina é corrida: ela acorda, prepara café da manhã para os filhos e leva os
meninos a pé para a escola a casa foi escolhida tendo em mente essa
possibilidade. De volta, ela deixa prontos os almoços deles, dá de mamar para
Cecília e a faz dormir; daí começa a trabalhar. "Daí começa a
trabalhar?", pergunto. Bianca sorri: "é, tem todo esse trabalho
`invisível’ antes."
Essas pequenas tarefas cotidianas não
entram na lista de pendências de trabalho da Bianca e aposto que nem nas suas.
Uma das explicações para isso está esboçada no livro A Condição Humana, da
escritora e filósofa alemã Hannah Arendt, em que ela define os tipos de
trabalho existentes. O primeiro deles é o labor, esse chamado por Bianca de
invisível, que nunca acaba: varrer o chão, podar as plantas, colocar o lixo
para fora, etc. O segundo é a obra, a atividade que tem um fim em si mesma, em
que conseguimos expressar nossos talentos e a que nos dedicamos com a alma. Por
fim, Hannah define como trabalho a atividade remunerada, que se estabelece a
partir de uma relação econômica. Foi essa terceira categoria que se consolidou
durante a Revolução Industrial na Inglaterra do século 18 como modo de garantir
a sobrevivência em territórios urbanos ¿ e, portanto, moldou as cidades
modernas. De lá para cá, o labor e a obra passaram a ser vistos como algo
reservado apenas às empregadas domésticas e aos artistas, enquanto o trabalho
ganhou um valor moral e obrigatório. É nessa lógica que vivemos eu e você. E a
Bianca.
O que ela não tardou a perceber é que
ter hora certa para começar e parar de produzir não funcionava em sua vida.
"Em 2007, eu era funcionária de uma editora e tinha que seguir a regra da
jornada de trabalho, mas isso me incomodava", conta ela. "Um simples
exemplo é que quando o correio abria, eu já estava a caminho do trabalho, e
quando fechava, eu ainda estava trabalhando, então eu simplesmente estava
impedida de postar qualquer coisa", diz ela, aos risos. Bianca não se
ressente desse período, fundamental para que ela aprendesse a se tornar dona de
sua própria rotina, ditada hoje não por regras corporativas, mas pelos desejos
e necessidades de sua vida pessoal. "Ano passado, grávida da Cecília, eu
chegava a trabalhar 12 horas por dia", conta Bianca, referindo-se, claro,
às suas atividades remuneradas, não ao labor. "Depois que ela nasceu, eu
passei uns quatro meses trabalhando pouco mais do que duas horas por dia",
diz ela. "Foi ótimo alternar atividades profissionais leves com a
maternidade, o que deixou minha relação com a minha filha também muito mais
saudável", conta Bianca. Ela defende que parar bruscamente de trabalhar
pode ser um choque para mães que, de uma hora para outra, passam a apenas se
dedicar aos filhos, durante a licença maternidade, para em seguida voltarem à
rotina das oito horas diárias de trabalho. Bianca achou uma medida de transição
muito mais branda para conciliar a maternidade ao trabalho.
Fazer sentido
A vontade de se sentir realizada no
trabalho também foi a força-motriz por trás da mudança na vida da jornalista,
ciclista e cicloativista Evelyn Araripe. Depois de passar por estruturas mais rígidas
de rotina de trabalho e perceber que elas não serviam em sua vida ela se juntou
a alguns amigos para criar o Gangorra, um espaço de co-working
interdisciplinar, que reúne pessoas que compartilham da paixão por pedalar em
São Paulo. "Hoje, não é nem que eu viva para trabalhar ou trabalhe para
viver, eu apenas vivo", conta Evelyn.
Foi também a relação com a cidade que
fez Rodrigo Bandeira de Luna abandonar as agências de publicidade para criar a
ONG Cidade Democrática. Seu trabalho é fazer conexões entre a sociedade civil
organizada (e desorganizada também, como ele gosta de dizer), o poder público e
a iniciativa privada para diagnosticar problemas e potenciais e, a partir daí,
criar projetos que deixem um bom legado nas cidades.
Uma das atividades da ONG foi o Plano
Diretor do bairro da Pompéia, em São Paulo, totalmente viabilizado por
financiamento colaborativo, no site brasileiro Catarse. Aliás, o próprio
Catarse foi criado em 2010 por dois estudantes de administração, Diego Reeberg
e Luís Otávio, que queriam "fazer projetos legais darem certo no Brasil".
Em vez de buscarem nos estágios existentes na área de administração a entrada
para o mercado de trabalho, criaram seu próprio caminho e hoje administram o
maior site de financiamentos desse modelo no Brasil, com mais de 500 projetos
bem-sucedidos.
A raíz de um trabalho que faça mais
sentido é recuperar aquele segundo conceito de Hannah Arendt, o da obra.
"Isso só é possível quando a relação com o trabalho não é puramente
utilitarista", defende Rita Monte, jornalista, iogue e integrante da ONG
Semente Una. "Se a pessoa enxerga o próprio trabalho, intelectual e
braçal, como algo apenas a ser usado, vendido, certamente será mais difícil de
expressar seus talentos e atribuir sentido a esse trabalho", analisa. Rita
é uma das criadoras do Programa de Expressão de Potenciais (PEP), uma
consultoria feita por ela e outros da Semente Una a empresas para ajudar os
funcionários a encontrar e expressar seus talentos. Não é à toa que ela se
apresenta como uma "empreendedora servidora".
Trabalhando menos
Essa nova lógica de trabalhar envolve
atribuir sentido às atividades profissionais, conseguir descobrir e expressar
seus talentos e tomar as decisões sobre a própria rotina. Mas ao contrário do
que possa parecer, não se trata de uma possibilidade restrita aos
empreendedores. Funcionários de empresas mais tradicionais também podem entrar
nessa. É isso que a Semente Una tenta possibilitar com o PEP. E há uma maneira
ainda mais simples de fazer isso ou pelo menos começar esse processo: trabalhar
menos. Isso porque, se é verdade que há um levante de novas possibilidades de
trabalho, ele ainda se limita a uma parcela reduzida das pessoas. "São
poucos os que têm essa escolha", reforça o professor de economia da PUC-SP
Ladislaw Dowbor.
Como bom economista, Dowbor sabe olhar
para essas novas lógicas de trabalho com lentes macro, de onde fica claro que
os empreendedores criativos ainda são minoria, enquanto prevalecem em maior
número os funcionários em empresas com uma estrutura corporativa clássica. E
aí, quem manda são os patrões. Por isso, ele defende que soluções em larga
escala contra a perda da qualidade de vida pelo excesso de trabalho passam
necessariamente pela diminuição da jornada profissional. Dowbor evoca um texto
do economista inglês John Maynard Keynes (1883 - 1946) escrito aos seus netos
(nós), dizendo que no futuro (hoje) só seriam necessárias 15 horas de trabalho
semanais para manter a economia estável. Keynes imaginava que as inovações
tecnológicas somadas ao avanço econômico dos países diminuiriam a necessidade
de trabalhar para que todos tivessem acesso às necessidades básicas. "A
questão é que perdemos essa noção de `básico¿ e hoje produzimos bens de consumo
em excesso, sem termos tempo para aproveitá-los", reflete Dowbor. O
economista lembra que essa frustração é acompanhada de uma enorme disparidade
na distribuição de renda, o que nos leva ao segundo argumento para reduzir a
jornada de trabalho: a necessidade de distribuir a oferta de empregos. "Só
assim evitamos pessoas desesperadas por um emprego ou chantageadas pelo medo de
perdê-lo", defende Dowbor. Essa ideia é igualmente abraçada pelo filósofo
italiano Domenico de Masi. "Temos que adotar a política do `trabalhar menos para
trabalharem todos¿", afirma de Masi.
O New Economics Foundation (NEF), um
centro de investigação independente que produz estudos sobre a economia do
bem-estar, propôs que a Grã-Bretanha adote uma jornada de 21 horas de trabalho
semanais. O NEF cita dados de um estudo do EU Working Time Directive, que
mostra que os ingleses em idade economicamente ativa gastam, em média, 20 horas
por semana com trabalho. O valor é baixo porque nessa conta estão inclusos os
desempregados. Quando é medida a jornada semanal dos trabalhadores remunerados,
o tempo varia entre 37 e 49 horas mensais. "Isso mostra que a economia se
sustentaria da mesma maneira se mais pessoas trabalhassem durante menos
tempo", diz Dowbor. A ideia não é simplesmente pensar em uma semana de 21
horas de trabalho, mas em como 1092 horas podem se dividir ao longo do ano, com
fluxos de produção intensa intercalados por épocas mais calmas, o que
flexibilizaria o trabalho de acordo com a vida de cada um. Algo que Bianca, lá
do começo do texto, já nos ensinou ser possível. Trabalhou mais durante a
gravidez para poder se dedicar à chegada de Cecília e, então, retomar a
produção aos poucos.
É claro que a simples redução da
jornada não garante, em si, uma melhoria qualitativa no trabalho e na vida das
pessoas. O ponto principal de trabalhar menos é ter mais horas livres para ler,
dormir, se exercitar, aproveitar a família e os amigos ¿ o que pode ser uma
ótima maneira de se conectar com os próprios talentos e, quem sabe, inventar
seu próprio trabalho.
Redescobrir a cidade
Curiosamente, esse processo geralmente
implica uma mudança na relação das pessoas com suas cidades ou é potencializado
por ela. Quando organizou sua rotina de trabalho para levar os filhos à pé para
a escola, Bianca descobriu que São Paulo tinha árvores frutíferas. Aliás, é
para disseminar essa descoberta que a designer Juliana Gatti criou a empresa
Árvores Vivas, que faz expedições para reconhecer e mapear árvores nativas da
cidade. E os benefícios não são apenas individuais, mas também públicos:
cidades onde as pessoas trabalham menos têm mais qualidade de vida.
Caso de Utah, nos Estados Unidos, berço
do "Working4Utah", que dividiu a jornada de trabalho de 40 horas
semanas em apenas quatro dias ¿ assim os trabalhadores ganharam um fim de
semana de sexta a domingo. Além de 82% dos trabalhadores terem aprovado o novo
sistema e se dizerem mais produtivos nele, as cidades ainda lucraram. O
programa divulgou dados que apontam que, no Estado de Utah, os quatro dias de
trabalho semanais reduziram, no primeiro ano, 5 milhões de quilômetros
percorridos de carro, o que representa uma economia de quase R$ 3 milhões. Já
em Guiné-Bissau, na África, foi instituída uma jornada de trabalho das 7h às
12h e das 15h às 18h. "Esse intervalo de almoço fazia as pessoas chegarem
muito mais descansadas e focadas para fechar o dia de trabalho", diz
Ladislau Dowbor. "No final do expediente, íamos passear e aproveitar a
cidade", conta. Trabalhar menos, com mais qualidade, e descobrir uma
cidade que você não imaginava que existia é possível. É verdade que depende, em
parte, da adoção de políticas públicas que permitam essa nova lógica. Mas abrir
a mente para novas possibilidades é igualmente importante nesse processo.
27/05/2017 - 20:23